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Mulheres e Covid-19: a sobrecarga de trabalho doméstico na vida das mulheres da periferia de Campina Grande-PB durante a pandemia

2020-23-09; covid19, divisão-sexual-do-trabalho, mulheres, periferia, Campina-Grande

O novo coronavírus vem gerando diversas mudanças na forma como vivemos, trabalhamos e nos socializamos. As medidas de saúde e isolamento social apontam para a paralisação de muitos serviços e reorganização da cidade, o que acarreta na potencialização de muitos problemas, tais como: falta de moradia, dificuldade de deslocamento, crescimento da taxa de desemprego e mudanças na rotina e renda familiar. A forma como nossa sociedade e cidades foram construídas e organizadas impacta na maneira que as políticas de combate ao Covid-19 acontecem e nas consequências que elas geram. Alguns levantamentos recentes mostram que grupos mais vulneráveis têm sofrido maiores consequências durante o isolamento. A falta de condições de emprego e moradia, principalmente na periferia, afetam de formas diferentes as famílias de classe mais baixa. Além disso, as mulheres, pelo acúmulo de funções dentro e fora de casa, são mais atingidas pelas demissões e sobrecarga doméstica. Foto de capa: O Trabalho de uma mulher nunca termina (1974) - See red women’s workshop (2016)


por Beatriz Brito, Beatriz Moura, Beatriz Sousa, Renata Cardoso, Sam Lima e Yona Kaluaná.

Para entender a atual relação das mulheres com a cidade, o lar e a sua relação com o trabalho doméstico, o Laboratório de Rua (LabRua) entrevistou algumas habitantes da periferia de Campina Grande-PB durante a pandemia. Nove entrevistas foram realizadas por telefone durante o mês de agosto de 2020, em diferentes bairros da cidade. As conversas permearam sobre como tem funcionado alguns critérios de organização da casa e da rotina antes e depois da pandemia, como: com quem e quantas pessoas vivem na casa; como está o trabalho remunerado e os serviços e responsabilidades com a casa; se tem e para onde tem saído nesse período; os meios de locomoção mais utilizados; como é o cuidado com os filhos e com o lar; questões de saúde; entre outras. Para proteger a identidade das entrevistadas, não serão divulgados os seus dados pessoais, sendo diferenciadas aqui pelos territórios que residem. A comparação das falas coincide com alguns dados nacionais de aumento e sobrecarga do trabalho doméstico, visualizados de forma mais aproximada, entendendo como esses problemas reverberam na vida dessas mulheres.

Como ponto de partida na compreensão do que implica a relação de gênero no cotidiano de mulheres periféricas no contexto do covid-19, é necessário resgatar conceitos de construção social que fundamentam essas relações. Nos apoiando no argumento de que homens e mulheres são seres sociais que se relacionam a partir da necessidade de produção e reprodução da vida social, é certo que deste processo emergiram desafios e contradições. O patriarcado, sistema em que homens detém maior poder social e moral expressos por meio de uma hierarquia que torna subalterna a representação construída como feminina, sustenta e alimenta até os dias atuais uma divisão sexual do trabalho (NOGUEIRA, 2018). Muitas vezes, essas estruturas de submissão são tão internalizadas durante toda a vida e criação que se tornam naturalizadas. O sociólogo Bourdieu (2003a [1998]) afirma que essas estruturas de dominação são produto de um trabalho incessante e histórico de reprodução para o qual contribuem agentes específicos e instituições, como também o próprio locus familiar, a Igreja e o Estado. A sociedade vigente atualmente, cuja base é capitalista, divide socialmente e sexualmente o trabalho de modo objetivamente simplista, de acordo com o gênero, raça e a classe.

Podemos explicar essa divisão sexual do trabalho como a distinção das funções sociais desempenhadas por homens e mulheres e na forma como os espaços públicos e privados são vistos e vivenciados, contribuindo para que as mulheres ocupem papéis muitas vezes ligados ao cuidado e cumprindo das tarefas ligadas aos serviços reprodutivos e não remunerados, deixando-as cada vez mais dependente do homem. Dentro da nossa sociedade capitalista, essa divisão sexual do trabalho se manifesta das mais diversas formas e é sempre necessário distingui-las e ponderá-las quando consideramos mulheres das mais diversas classes sociais e raças. A socióloga brasileira Saffioti (2004) defende que no sistema capitalista “há sem dúvidas uma economia doméstica ou domesticamente organizada, que sustenta a ordem patriarcal”, ou seja, tanto a dupla jornada de trabalho de um contingente significativo de mulheres, sobretudo de classes mais abastadas, quanto essa gama de contradições patriarcais a qual estão submetidas, rebatem de forma expressiva no campo da materialidade e produção de riqueza e no campo da subjetividade dos valores e da consciência.

Quando se trata de cidade, esse mesmo modelo capitalista de produção do espaço incentiva a expansão horizontal da malha urbana, a periferização, gentrificação e um regime fundiário excludente, com a má distribuição ou falta de acesso à serviços básicos como saúde, educação, cultura e moradia. Ou seja, distribui e localiza a infraestrutura urbana e a população nas cidades por diversos interesses. Associado à não universalização dos direitos sociais, a divisão sexual do trabalho e o não acesso aos serviços básicos contribui também para empurrar as mulheres cada vez mais para dentro da linha da pobreza. E nos territórios periféricos, a manutenção e multiplicação desses problemas afeta as mulheres com mais intensidade principalmente se ela for negra.

Essa segregação populacional na cidade de acordo com a disponibilidade de infraestrutura, fica um pouco mais palpável quando analisamos os mapas a seguir. De acordo com o último levantamento do IBGE (2010) relacionado a distribuição de renda (mapa 1) na malha urbana de Campina Grande, percebe-se como a localização de certos grupos populacionais pode se conformar: quanto mais nos afastamos do centro da cidade, mais frequente é a quantidade de espaços carentes de infraestrutura básica e serviços e menor é a renda dos habitantes. Quando trocamos a categoria de análise de classe para raça (mapa 2), é possível ver que eles se sobrepõem, e quanto mais periférica é a parcela de cidade, mais escura é a cor de pele. A inexistência ou dificuldade de acesso a serviços essenciais e transporte dificulta a mudança nos padrões de vida, contribuindo para a manutenção da exclusão social e da persistência e multiplicação da pobreza.

Mapa raça e classe

Habitamos cidades que não são imparciais e que possuem forte tendência de gênero, raça e classe, e a pandemia do novo coronavírus evidenciou e fortaleceu muitos desses problemas. Alguns deles relacionados ao gênero, que não deixa de possuir atravessamentos de raça e classe, como o aumento de violência doméstica, do desemprego e da sobrecarga de trabalho feminino. Estes dois últimos, principalmente, abordaremos aqui com mais atenção.

Um dos principais problemas ocorrentes na pandemia é o desemprego. O IBGE vem realizando a pesquisa PNAD Covid-19 Mensal, criada na intenção de compreender os impactos da pandemia no mercado de trabalho. Na Paraíba, durante o mês de Junho de 2020, a pesquisa revelou que 19,8% das pessoas que trabalhavam, estavam temporariamente afastadas, devido ao distanciamento físico. A pesquisa também revela que esses números de afastamentos são maiores entre as mulheres do que entre os homens. Em maio, segundo mês completo de pandemia no país, 23,5% das mulheres estavam desempregadas, enquanto 15% dos homens haviam sido afastados de seus empregos. Já no mês de Julho, apesar do encolhimento dessa disparidade, 18,6% das mulheres tiveram que se manter afastadas do trabalho, enquanto 11,1% dos homens se mantiveram em tal situação.

A PNAD Contínua realizada em 2019 no estado da Paraíba já mostrava um pouco dessa realidade atual. A pesquisa ressalta que há um ano atrás, a média de tempo dedicada aos afazeres domésticos pelas mulheres chegava a ser o dobro do que é dedicado pelos homens: enquanto elas dedicam 22,4 horas semanais, eles apenas 11,5 horas. No contexto da pandemia do Covid-19, a situação pode ser ainda mais complicada para essas mulheres, o que é observado na pesquisa nacional “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia” realizada pelas organizações Gênero e Número e SOF Sempreviva Organização Feminista. Os dados levantados mostram que 41% das mulheres que continuaram trabalhando durante a pandemia afirmaram sentir que estão trabalhando mais nesse período. Elas relataram que os serviços prestados em casa aumentaram de forma geral, inclusive para aquelas que já trabalhavam em casa, e além do trabalho remunerado, o trabalho doméstico e os cuidados com outras pessoas, as tarefas em casa ainda não são distribuídas de modo igualitário, sobrecarregando-as ainda mais.

Para entender como esses índices de desemprego e sobrecarga de trabalho doméstico afetam as mulheres nas periferias de Campina Grande, escolhemos alguns bairros e mulheres para serem entrevistadas e relatarem suas experiências. A partir do contato com as lideranças comunitárias desses territórios, conseguimos conversar com nove mulheres dos seguintes bairros: Acácio Figueiredo, Aluísio Campos, Malvinas, Pedregal, Quarenta, Ramadinha, São José, Tambor e Três Irmãs, localizados no mapa a seguir.

Bairros estudados

Com exceção do São José, Quarenta, Pedregal e Tambor, a maioria dos nove bairros ou territórios estão distantes do centro da cidade, e mesmo não sendo tão periféricos, passam por problemas semelhantes, como o pouco ou nenhum acesso à alguns serviços essenciais, ineficiência de transporte e infraestruturas adequadas. No caso do Complexo Habitacional Aluízio Campos, o problema da distância para a área central se agrava ainda mais, uma vez que este se encontra fora do perímetro urbano da cidade, com menos acesso à serviços básicos, infraestrutura urbana e ao transporte público. A localização dos bairros, sobreposta aos mapas de raça e classe, nos ajuda a entender quem são e em que condições essas mulheres e suas famílias vivem.

A dificuldade de se locomover para outras partes da cidade aparece como um dos grandes problemas durante essa pandemia e período de distanciamento físico, seja para cumprir tarefas domésticas fora de casa, trabalhar ou para usar serviços de saúde. Muitas das famílias não possuem meio de transporte próprio, e quando possuem são de posse e uso dos maridos ou filhos, ficando para as mulheres a opção de se locomover de forma dependente pelo transporte público da cidade. Com a frota de ônibus cortada ou reduzida, e muitas vezes com a impossibilidade de ficar em casa e cumprir o isolamento social, essa locomoção se torna ainda mais deficiente pela dificuldade de pagar por serviços privados, como táxis e aplicativos de transporte (uber, 99 taxi, entre outros).

Entrevistadas

A respeito das tarefas domésticas, as mulheres entrevistadas já se consideravam responsáveis por elas antes da pandemia, mas todas também afirmam que os cuidados com a casa aumentaram neste período, havendo uma sobrecarga. Para elas isso acontece porque o tempo não está mais dividido entre outras atividades e saídas de casa, sejam delas ou dos outros membros da família.

Entrevistadas

Mesmo os outros familiares também estando isolados, poucas delas disseram receber ajuda. A maioria das mulheres entrevistadas relata que essas atividades são responsabilidade só delas, recebendo pouca ajuda e de forma pontual. Em algumas falas elas enfatizam que essas atividades são de sua responsabilidade.

Entrevistadas

Apenas uma das entrevistadas não possuía outros trabalhos antes da pandemia, dedicando-se exclusivamente ao cuidado dos filhos e da casa. Das nove, três são chefes de família onde só sua renda sustenta o lar e seis disseram que outras pessoas trabalham e ajudam com os gastos do domicílio. Das oito mulheres que conseguiam trabalhar extra-casa, todas desempenhavam serviços informais ou autônomos, como costureira, vendedora, cuidadora, diarista, entre outros. Assim como aconteceu em todo o país, com a pandemia esses serviços diminuíram bastante e três perderam seus empregos ou estão paradas.

Entrevistadas

Ao abordarem a perda de empregos e a sobrecarga de serviços domésticos, algumas relatam a falta de trabalho para alimentar a renda fixa individual. A impossibilidade de trabalhar contribui para que percam a independência financeira e consequentemente a liberdade, por terem que depender dos maridos, muitas vezes se sentindo com maior obrigação de cumprir as tarefas domésticas e responsabilidade com a educação dos filhos. Além disso, a falta de trabalho dificulta alternativas de socialização e lazer, visto que muitas vezes para elas as três funções estavam associadas, seja pelas interações do local de trabalho ou no caminho para.

Entrevistadas

Cerca de 33,3% das entrevistadas possuem pessoas com deficiências motoras ou mentais nas famílias, como filhos/as. Algumas dessas precisam de tratamentos especiais, necessitando de algum uso de serviços de saúdes, mas que tiveram que ser interrompidos durante essa fase, tanto por medo de contaminação, como por falta de tempo e de meios de locomoção nesse período. Além disso, há também membros das famílias que fazem parte do grupo de risco definido pela OMS para a Covid-19. Com isso, a histórica e social atribuição da função de cuidado com os membros da família para as mulheres, acaba sobrecarregando-as mentalmente nesse período.

Entrevistadas

Em alguns depoimentos é perceptível como essas famílias vêm sendo afetadas, principalmente as mulheres. Os altos índices de contágio e mortes na cidade e país, a incerteza de locomoção em urgências, principalmente até serviços de saúde, a sobrecarga de trabalho doméstico e a necessidade de ficar em casa foram algumas das queixas destacadas anteriormente. Aliado a isso, a falta de poder trabalhar e ausência de lazer foram bastante pontuados quando se questionou o que elas mais sentem falta do período sem isolamento social.

Entrevistadas

O resultado da pesquisa mostra que a pandemia potencializou muitos problemas, assim como mostram os dados nacionais do início do isolamento. As entrevistas evidenciam que a perda de emprego, diminuição da renda, sobrecarga de trabalho doméstico e cuidado da família, foi comum a maioria das mulheres da periferia de Campina Grande. O relatório nacional ‘Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia’ (2020) defende o argumento de que as “dinâmicas de vida e trabalho das mulheres se contrapõem ao discurso de que ‘a economia não pode parar” (pg 5), só que agora, mais do que antes, elas continuam trabalhando de forma não remunerada, o que intensifica ainda mais as desigualdades de gênero.

A divisão sexual e invisibilidade do trabalho doméstico e de cuidados com a família deixa de lado essa sobrecarga feminina nas políticas públicas mais efetivas de combate às desigualdades durante a pandemia. Mas é preciso considerar como esse problema afeta em outras dimensões: nas relações sociais, na preocupação e dificuldade de acesso à saúde, na precariedade e informalidade do trabalho, afetando a liberdade econômica dessas mulheres e deixando marcas psicológicas.

Escutar mulheres que estão constantemente sofrendo essas invisibilidades, seja pela semelhança de gênero, como pelos territórios que estão inseridas, ou pela classe e raça foi importante para entender que há uma diversidade de experiências de acordo com as diferenças dessas mulheres. É importante existirem estudos que se aproximem dessas experiências cotidianas, de forma não genérica e com o desafio de construir conceitos e dados de forma participativa.

Referências:

  • BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2003
  • NOGUEIRA, Leonardo. As determinações patriarcais-heterosexistas da sociedade capitalista. In: NOGUEIRA, Leonardo; HILÁRIO, Erivan; PAZ, Thaís Terezinha; MARRO, Kátia. Hasteemos a bandeira colorida: diversidade sexual e de gênero no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
  • SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 3 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
  • _______. Gênero, Patriarcado e Violência, 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2015. GÊNERO E NÚMERO; SOF SEMPREVIVA ORGANIZAÇÃO FEMINISTA: “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”. 2020. Disponível em: <mulheresnapandemia.sof.org.br>. Acesso em Setembro de 2020. IBGE: Média de renda por setor censitário em Campina Grande (2010). Disponível em: <cidades.ibge.gov.br/brasil/pb/campina-grande/pesquisa/23/25124>. Acesso em Setembro de 2020.
  • ______. Etnia proporcional de pessoas negras e pardas por setor censitário de Campina Grande (2010). Disponível em: <cidades.ibge.gov.br/brasil/pb/campina-grande/pesquisa/23/25124>. Acesso em Setembro de 2020.
  • ______. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) COVID-19 - Junho de 2020. Rio de Janeiro (2020). Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101737.pdf. Acesso em Agosto de 2020.
  • Mulheres dedicam o dobro do tempo dos homens aos afazeres domésticos na PB. Jornal da Paraíba, 2020. Disponível em: http://www.jornaldaparaiba.com.br/vida_urbana/mulheres-dedicam-o-dobro-tempo-dos-homens-aos-afazeres-domesticos-na-pb.html. Acesso em Agosto de 2020.

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